A arte do esquecimento

Dia desses conversava com um amigo de muitas caminhadas, quando ele começou a relembrar nosso primeiro retiro em Campos do Jordão. Fui surpreendido ao me dar conta que não me lembrava de nada! Somente depois de um esforço, lembrei-me de fragmentos do que havia acontecido. À medida que ele discorria sobre as brincadeiras que eu havia feito durante a viagem, imaginando situações surreais, é que me dei conta do quanto o havia marcado.
Normalmente, sou tímido para quem pouco me conhece, mas adoro uma boa farra com as pessoas mais conhecidas. Dar gargalhadas é muito bom, daquelas que fazem a barriga doer e nos tiram o ar. Isso inclui rir da própria sorte, das coincidências, das maluquices que penso e falo e outras coisas legais. Ter senso de humor é fundamental a qualquer hora. Acho que o herdei de minha mãe.
Ao chegar em casa veio forte a lembrança do que senti após ter participado desde retiro: a minha vocação para viver em uma comunidade.
Do momento que atravessei o portão do sítio no Bairro dos Melos, fui descobrindo o quanto era importante me descobrir, me encontrar. A felicidade de estar entre pessoas estranhas, que mal sabia o nome, era enorme. Partilhávamos os mesmos objetivos, trilhávamos caminhos comuns e estávamos em busca de nossa divindade, do Deus guardado dentro de cada coração. Dava para sentir a energia emanada a cada meditação, trabalho manual, refeições e principalmente, no horário em que fazíamos o silêncio absoluto no início da tarde.
Esse era o momento em que eu escrevia para mim mesmo, em meu "diário de bordo", uma pequena agenda vermelha.
Senti-me amparado, seguro e amado nesses dias. Fiz amigos e amigas. Abracei e fui abraçado. Consolei e fui consolado. Aprendi mais do que ensinei naqueles dias de azul profundo e noites estreladas e frias na Serra da Mantiqueira. Era maravilhoso saber que eu podia SER muito mais do que supunha até então. Eu tinha certeza que não seria mais o mesmo depois desse retiro. Eu seria um homem melhor. E essa certeza se confirma sempre.
Ao sair, veio a dor da partida. Chorei pela saudade que já estava sentindo. Na época seria capaz de deixar tudo aqui, até mesmo as pessoas que amava, para viver a minha vocação. Mas já era tarde demais. Eu simplesmente não poderia deixar a minha vida estruturada com muito esforço. Além disso, precisaria ser muito egoísta. Mesmo entristecido com o mundo que voltaria a encarar, cheguei em casa renovado, pronto para o que desse e viesse. Foi importante sentir também que era esperado com grande expectativa.
Para quem está preocupado com a perda de memória até que escrever sobre esse problema me fez lembrar de boas passagens! Mas ainda assim, continuo meio aflito com a falta de memória para outros temas. Será que o esquecimento que tenho experimentado decorre da proximidade de meus 50 anos? Estarei ficando senil precocemente? Tem pessoas que bebem para esquecer; será que terei que beber para me lembrar? rsrsrs
Reconheço que do momento que passei a viver com tudo o presente, o passado (que inclui o bom e o ruim) está desaparecendo!
Os ressentimentos, mágoas, alegrias e trunfos estão encolhendo e perdendo a importância e espaço que outrora tinham. Não consigo mais vivenciar as experiências como fazia há anos atrás. Eu não me recordo mais tão bem delas. E para recordar, preciso de ajuda.
Existe um lado interessante nesse "processo" de esquecimento. Acho que estou começando a perdoar. Sinto-me liberto diante da vida que tenho. Mal me resta tempo para pensar no futuro, aliás eu pouco me importo como os desafios que terei pela frente. Acredito que a consciência do presente, do que eu sou capaz de fazer, de minha capacidade de mudança e consequente aprendizado, me tornam transparente diante de mim mesmo. Sinto que não tenho o que temer e a minha vida me ocupa o suficiente.
Tenho que tomar decisões que envolvem o meu futuro e sinto-me apático pela primeira vez. A questão não é ter que tomar decisões, mas viver algo que não existe, criar expectativas inevitáveis, ficar sonhando acordado e penar com a cobrança interna para que tudo se realize. O resultado final deixou de ser o meu objetivo de vida. Se mudo, tudo muda.
O meu presente está se tornando tão rico de experiências que o passado e o futuro tornam-se pouco atraentes. Um, eu já vivi e não me interessa revivê-lo; o outro, desconhecido e que só fará sentido se for uma continuidade do que vivo hoje no presente.
Assim, continuo vivendo esse embate gostoso de fazer escolhas e tomar decisões. Mas juro que farei apenas se minha consciência e meu coração estiverem de comum acordo.

Comentários

Postagens mais visitadas