Sementes adormecidas

A distância física e emocional foi uma alternativa complexa para que eu pudesse sobreviver às decepções que um dia me amadureceram. Hoje tenho uma sensação de liberdade e autonomia que nunca experimentei. Por outro lado, o não envolvimento é doloroso por trazer consigo a atitude de não pertencimento, que também nunca senti.
Imagine-se em um lugar onde você passou a maior parte de sua vida. Coloque nele pessoas que você conviveu intensamente (isso inclui aquelas que já morreram, outras que você não conseguiu formar grandes  vínculos e ainda as que você amava espontâneamente), acrescente sensações agradáveis e desagradáveis que sempre se alternavam, gerando um desgaste de convivência quase irreversível, pois em  muitas situações as pessoas sofriam por uma opção de vida!
Lentamente você descobre que a sua vida precisa continuar longe desse caos tão familiar. E vai embora silenciosamente dessa loucura tão conhecida. Se despede com coragem para poder sobreviver e não ser envolvido por essa densa energia. Deixa para trás até mesmo as poucas pessoas que nutria um carinho especial.
Parti sem olhar para trás e surpreendi.
Os anos se passam, a saudade foi suplantada pela realização de se viver em um mundo melhor, para mim e minha família, onde o respeito e o amor florescem.
Agora tenho um compromisso anual que me faz voltar para esse mundo do qual eu não pertenço mais. Sinto-me desconfortável e sou tomado por uma angústia. Lembro-me do quanto me envolvi ajudando e o quanto o meu esforço foi em vão. Se não consegui mudar as pessoas, precisava eu mudar. Isso fica claro quando sou levado, por um compromisso de amor, a voltar a esse mundo que não me pertence mais, por um dia.
As pessoas ficaram tão desfocadas em meu olhar que não as reconheço mais. A maioria delas  permaneceu congelada em velhos hábitos e mal sei hoje como abordá-las.
Já pensei na possibilidade de estar sendo tomado por uma grande soberba diante do mundo que deixei para trás, mas estou certo que o sentimento que tenho é de renúncia sem qualquer vestígio de arrependimento.
Sinto-me impotente diante do abandono e das sequelas por que padecem pessoas que tinham tudo, ou pelo menos o direito de terem uma vida bem melhor. Vejo o quanto o egoísmo pessoal pode destruir uma família para sempre e o quanto é triste sentir que não fazem mais parte do meu convívio. Transformaram-se lembranças vivas.
A distância me deu coragem suficiente para ver o quanto eu incomodava apenas por ser o que sou. Quando me dei conta que era capaz de gerar sentimentos tão ruins, perguntei-me aonde havia errado. Depois de passar por dias devastadores, tentando achar a solução desse enigma pessoal, conclui que ao querer ajudar amorosamente, era visto como diferente, pelos olhos distorcidos para quem estendia a mão, os meus braços e o meu coração. Na infância sempre fui preterido, até mesmo desprezado, por ser uma criança feliz e amada por meus pais. O amor que recebi, me tornava diferente dos demais.
Essa é uma situação resolvida em minha vida. É uma página virada. Nunca me senti melhor do que ninguém em nenhuma situação ou tempo. Sempre soube me colocar no lugar do outro. Por isso, aprendi compreender com compaixão precocemente.
Continuarei cumprindo o que me cabe fazer. Não deixarei de incluir em minhas orações quem agora está longe de mim. Não tenho como apagar o passado e nem poderia negar a sua importância para ser o que sou hoje. Lancei muitas sementes, aprendi com exemplos fortes e sobrevivi por conta de minha autoestima. As sementes que adormecidas estão, brevemente brotarão.

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