Lembranças que os ossos guardam.

    Eu nunca havia escrito exumação. Podia jurar que se escrevia "ezumação". Eu também nunca havia participado de uma exumação de verdade. E assim fiz a exumação do meu pai e da minha tia ao mesmo tempo, abrindo espaço para que um parente pudesse ser enterrado. Era um primo distante que por conta de uma doença, terminou acamado por 11 anos. Mas guardo a lembrança de um homem íntegro, um trabalhador dedicado e pai amoroso que deixou duas filhas inconsoláveis. Estou certo que a morte foi a sua libertação aos 68 anos.

    Quando soube pela minha irmã que havia sido o escolhido para essa missão, por segundos fiquei assustado, mas topei o desafio de reencontrar o que sobrou do meu pai depois de quase 4 anos. O coração disparava de ansiedade imaginado o que veria após a abertura sepultura em pleno Domingo de Páscoa! Será que meu pai teria ressuscitado? Ou os seus restos mortais o tornariam um zumbi pronto para atacar os coveiros? Depois de acordar dos delírios da minha imaginação, fui ao encontro da minha realidade. O caixão do meu pai praticamente se dissolveu, assim como a maioria dos ossos. Restaram os ossos mais compridos das pernas e braços além do crânio. Mas o terno estava praticamente perfeito. A camisa, a gravata com o nó feito e as meias estavam lá! Era o meu pai de verdade, sempre impecável até depois de morto. Senti um aperto no peito e chorei discretamente, afinal eram os ossos do meu pai, que me faz muita falta.

    Depois da exumação saí do cemitério com a sensação de que fiz o que deveria ter feito. Mesmo assim, fiquei pensando no fim de todos nós, um punhado de ossos! Na verdade, era o fim dos corpos que recebemos para viver aqui, como se fosse um traje espacial.

    Assim, vem a constatação óbvia de que não possuímos nada na vida e que ela só faz sentido se estivermos vivos. Vivos podemos tudo, amar, aprender, ensinar e uma infinidade de verbos. A morte só não vence as lembranças deixadas por quem se vai. Hoje sei que as pessoas que liberaram seus corpos, que partilharam suas vidas conosco, passam a viver em nossos corações para sempre, imortalizados para quem as amou.

    Pode parecer estranho uma postagem sobre a morte. Não a temo como antes, pois agora sei que ela é o ápice da vida. E também sinto, sei que ela vem se aproximando para mim. Uma vez morto, meus ossos serão o único vestígio físico da minha existência e que quando se dissolverem, ninguém saberá que eu passei por aqui.

    Faço valer a minha vida a cada dia que acordo e agradeço a chance de poder prosseguir mais um pouco. Não tenho grandes pretensões, não quero nomear uma rua ou sala ou ter um busto horroso que ficará tristonho no canto de uma praça. O legado silencioso que deixarei será imortalizado pelas gerações futuras, que poderão torná-lo maior e melhor. Os créditos deixarão de ser meus e farão parte da História da Humanidade. Imortalidade é diluir-se e se tornar realmente livre. 


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