O triste fim de Cherri

A minha infância foi um laboratório de experiências com muitos adultos. Um dos adultos mais marcantes, foi uma das tias de minha mãe. Ela foi escolhida por ser uma das personalidades mais difíceis e maldosas que já conheci e convivi.
Ao longo de minha infância, talvez tenha sido poupado de suas "ruindades" como diziam (algo que não aconteceu com meus primos), justamente por sentir ao mesmo tempo, muito medo e fascínio por aquela senhora magra e pequena, de grandes olhos e passos sempre apressados. Ainda escuto o barulho que fazia ao andar em minha memória, pois vivia com os bolsos do vestido cheios de chaves que chacoalhavam a cada passo, avisando a sua presença.
As maiores vítimas de sua personalidade não eram os seres humanos, mas os animais que possuía. Lembro-me do primeiro cachorro que ela ganhou de presente. Era um cachorro de raça, frágil e carinhoso que foi colocado em uma tosca casinha, nos fundos do enorme terreno ao lado de minha casa, desde a sua mais tenra idade, acorrentado! Sei dessa história pois foi colocado lá antes mesmo de eu nascer.
Eu e meus primos éramos proibidos de nos aproximar do cachorro e quanto mais dar um passeio com ele. O pobre animalzinho passava os dias e noites latindo desesperadamente e lutando para se desvencilhar da grossa coleira e corrente que limitavam o seu espaço de liberdade.
A velha senhora que usava uma rede nos finos e escassos cabelos, dizia que Cherri ficava preso para poder proteger a casa de ladrões. Mas como protegeria se ficava preso o dia todo? perguntei a ela, tomado de coragem.
Estou esperando a resposta até hoje!
Lembro-me de Cherri. Era um pequeno cachorro de pêlo castanho claro, que cobria seus olhos parcialmente. Seu pêlo estava sempre sujo e embaraçado, sem contar as pulgas que passavam o dia incomodando o prisioneiro.
A casinha de madeira era pequena, cheia de gretas e recoberta por uma folha de zinco dobrada. Ficava próxima do galinheiro onde a velha senhora sempre buscava ovos frescos após o alarde que as galinhas faziam. Pintinhos eram poucos.
Lembro-me que consegui o privilégio, por ser uma criança obediente e silenciosa, de ver a velha carcereira alimentando o cãozinho muitas vezes como uma mistura de bofe com angú empedrado, com um forte cheiro azedo.
Cherri se alegrava ao vê-la chegar e não recebia qualquer afago. Ela o afastava com uma vara de bambu, batendo com energia e dizendo "passa fora". Essa mesma vara servia para nos amedrontar, caso fizéssemos alguma travessura, como se aproximar do cão. Ela seria capaz de ir fazer queixa com nossos pais e até nos prender no pé da mesa, como fez com um primo mais novo. Ao vê-lo chorando e preso, pensei logo que acabaria como o cãozinho.
Eu tinha muito medo, mas mesmo assim passava pelo muro feito de folhas de zinco, quando a velha tia saía e corria para conversar com Cherri. Ficava de longe conversando, pois não me atreveria a colocar a mão no cão. Eu poderia ser o próximo a levar as dolorosas varadas. Ficava com a "fera" conversando até que ele se acalmasse. Eu gostava de "fazer companhia" o maior tempo possível. Eu também me sentia muito só, por ser filho único, apesar de morar próximo de primos e primas.
Depois voltava para casa em silêncio, o que preocupava a minha mãe. Mas eu nunca disse a ela o que me fazia ficar assim. Depois de muitos anos consegui verbalizar e só parei de pedir quando consegui. Queria um irmão.
Após muitos anos encarcerado, aquele pobre cão foi pego de surpresa por uma das famosas enchentes petropolitanas, que fizeram o rio transbordar rapidamente no fim de uma tarde em março.
A casinha e Cherri foram rodeados pela água barrenta que rapidamente alagou toda parte baixa do terreno onde ficava a prisão canina. O galinheiro foi tomado pelas águas, obrigando as galinhas a ficarem nos poleiros mais altos e o galo voar para o telhado. A forte correnteza e rapidez com que a água subiu surpreendeu os moradores mais antigos.
Tentei em sair de casa para ver o rio subir, mas fui impedido por minha mãe e pelas fortes trovoadas, que mais pareciam "flashes" das antigas "máquinas de retrato".
Juro que não pensei no pior. Pois o pior acontecera. A tosca casinha foi invadida pelas águas e o pobre cão subiu desesperado no telhado, ilhado pela turbilhante água barrenta. Uma tia assistira a luta do cão da janela de sua casa, após ele ter caído na água e nos relatou comovida. O pobre lutou o quanto pode. Afogou-se antes que a água abaixasse. Não deu tempo, afinal era um cão pequeno e frágil.
Encontramos o corpo do cão, preso a corrente e recoberto de lama logo que a água abaixou.
Fomos todos tomados por um silêncio doloroso. Choramos a perda de verdade.
Logo que a velha senhora soube o que havia acontecido, tratou de pedir a alguém para jogar o corpo do animal dentro do rio. Ele não teria mais utilidade para ela, nos disse.
Nesse dia, descobri precocemente não a certeza das perdas que teria ao longo de minha vida, mas o quanto de maldade e frieza podem ser guardados em um coração.

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